sábado, 14 de agosto de 2010

Palmada nunca mais?



Cada vez mais pais aderem à tendência de educar os filhos com base no bom diálogo sem lançar mão de tapinhas corretivos. Agora, essa filosofia contemporânea virou um projeto de lei que tramita pelo Congresso Nacional e recebe o apoio de psicólogos e pedagogos. Veja as opiniões sobre o assunto e as alternativas dadas pelos especialistas para não levantar a mão para as crianças.
A PALAVRA DOS ESPECIALISTAS:
01. Existe a palmada aceitável ou a palmada educativa?
Resp.: Não. A psicanalista Vera Iaconelli, mestre e doutoranda em psicologia pela Universidade de São Paulo e coordenadora do Instituto Gerar de Psicologia Perinatal é taxativa: “Bater deseduca”.
02. Por que bater não educa?
Resp.: “Por que ensina, antes de tudo, que é uma forma de se comunicar e de resolver conflitos”, explica a psicanalista Vera Iaconelli. Acredita-se que, quando a criança vê e convive com a agressão física, ela compreende que essa é uma forma aceitável de solucionar problemas. Isso pode interferir, por exemplo, na relação com os coleguinhas na escola. Além do quê, a palmada e o grito geralmente acabam surgindo quando nenhuma outra providência funcionou. “Com um tapa, você não ensina sobre a ação e a consequência dela. Você simplesmente interrompe uma atitude”, explica Daniella Freixo de Faria, terapeuta junguiana.
03. O que pode ser considerada uma agressão?
Resp.: “Todo gesto e palavra que leve a criança a se sentir ameaçada em sua integridade física e moral”, explica Vera Iaconelli. A escolha das palavras e até mesmo o tom da voz podem ser interpretados como um ato violento. Mas, claro, nem todo grito carrega agressividade, ressalva Vera. “Os pais podem gritar para advertir uma criança num momento de perigo, por exemplo.”
04. Quais as consequências da palmada sobre a formação da personalidade da criança?
Resp.: A repercussão vai depender do grau de intensidade da agressão à qual a criança foi submetida. É preciso considerar também a frequência com que o recurso foi utilizado no lugar da palavra. “Cada criança vai viver essa experiência de uma forma diferente. É difícil avaliar”, alerta Vera Iaconelli. Em casos mais graves, ela pode incutir esse padrão de violência, verbal ou física, e reproduzir isso no futuro – com marido, patrão, filhos. Por outro lado, o bater pode reforçar o sentimento de que a gente tem que ter medo do mais forte. “Isso pode colaborar para que a criança se torne insegura, calada e até mais medrosa, especialmente diante de pessoas autoritárias”, lembra Daniella Faria.
05. Há gerações de pais que foram criadas à base de palmada. Como mudar esse hábito?
Resp.: Quando uma geração inteira age de uma forma, a tendência é que fique mais difícil reconhecer o erro e mudar um hábito, afinal “todo mundo faz”. Há até mesmo quem entenda o bater e o castigo como gestos de amor, de zelo pela educação. O problema é o risco de banalizar uma forma de violência encoberta. Se existem outras estratégias de educação, sem traumas e consequências negativas, por que não usá-las? “Para a criança, a força e o tamanho do adulto já representam uma violência pela desproporção entre o adulto e a criança. Acostumar-se com a violência é um grande risco para o desenvolvimento”, defende a psicanalista Vera Iaconelli.
06. Castigo pode? Resolve?
Resp.: “Os cuidadores devem investir em ensinar às crianças as consequências de suas ações”, sugere Daniella Faria. Numa situação em que, por exemplo, ela risca a televisão: os pais podem pedir para que ela limpe o que fez e exigir ainda que fique algum tempo sem ver desenho animado. Embora pareça um castigo, tem tom e propósitos diferentes. A criança reconhece o resultado de suas escolhas. Quando percebe que ele não é bom, aprende. “Isso, claro, vai depender da idade. O bebê muito pequenininho pode demorar mais para adquirir essa autonomia para escolher”, continua Daniella Faria. O castigo carrega um significado parecido com o de cumprir uma pena. Além de deixar uma mensagem vaga para a criança, pode gerar mais revolta do que aprendizado. “Com isso, a noção de consequência se perde. Existe uma diferença gigante entre aplicar um castigo e ensinar a consequência de um ato. Um é punitivo, e o outro, educativo”, analisa a terapeuta. É comum confundir entre essas duas opções. Dizer “ou a gente faz assim e o resultado é esse” é muito diferente de dizer “se fizer isso, não tem aquilo”. Enquanto a primeira alternativa é uma forma de mostrar a consequência no futuro próximo, a segunda esbarra na facilidade da chantagem. “Use sempre ‘ou’ e nunca a palavra ‘se’”, aconselha a terapeuta.
07. Então, como se deve repreender e educar?
Resp.: Desde o início, usar a palavra deve ser a primeira opção. É preciso explicar, conquistar a confiança da criança, de modo que ela entenda que “não” quer dizer “não” e que existe uma razão para isso. “Os pais devem ser bem seletivos e consistentes: regras demais, que se modificam, ou supérfluas enfraquecem a fala dos pais”, ensina Vera Iaconelli.
08. Existe diferença entre o tipo de repreensão que se deve usar quando se está em casa ou na rua?
Resp.: Quando a repreensão acontece na rua, ela vem acrescida do fator vergonha. Ou seja, uma criança pequena pode aprender que dar um chilique em público se torna eficiente em razão do receio dos pais sobre a opinião de quem está assistindo. Quando esse tipo de cena acontece, o melhor é encontrar um lugar discreto para a solução do problema – para que a criança não utilize o olhar dos outros a seu favor e também evitar cenas que sejam humilhantes para ela. “Principalmente com as crianças maiores, que são mais sensíveis à opinião do grupo social”, lembra Vera Iaconelli.“Sou da teoria da constância, coerência e consequência”, defende Daniella Faria. Toda vez que uma situação se repetir, a criança deve ser corrigida. “Nunca deixe passar. Pode ser na rua, no banho, em casa ou na China”, reforça a terapeuta. Assim ela se sente segura sobre o que seus pais esperam dela.
09. Quem tem filhos sabe que é comum perder a paciência e o controle. O que fazer então?
Resp.: Bater, não precisa. Existem outras formas. Isso não significa que seja pecado perder a paciência. Porém, nessa hora, é preciso reconhecer que qualquer atitude ou decisão tomada estará contaminada pelo momento. “Quando sentir essa irritação, fale a verdade. Vale até se abrir para a criança, dizer que está muito chateado e que precisa se acalmar. A gente é o adulto da história. Não podemos nos esquecer disso”, aconselha a terapeuta Daniella Faria. Se for preciso, afaste-se e converse depois com o pequeno.
10. Que mudanças o novo projeto de lei vai trazer à sociedade?
Resp.: “Uma lei é algo que, antes de tudo, obriga as pessoas a pensar, debater sobre ela. Essa já é uma grande vantagem”, analisa a psicanalista Vera Iaconelli. De certa forma, embora os detalhes da nova lei não tenham sido alinhados, o trabalho de sensibilizar a opinião pública cumpre boa parte da sua função. “Eu classificaria essa lei como o início de uma conscientização dos adultos, muitos dos quais apanharam na infância”, lembra a terapeuta Daniella Faria.

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